O mundo é pequeno e tem uma vertente que desemboca em Santos. Este era o mote de uma crônica sobre coincidências e conectividade entre pessoas que tinham visitado a China a negócios, moravam em lugares diferentes do Brasil, porém eram de Santos e que se encontraram, casualmente graças a mim, numa agradável e ensolarada tarde de sexta, no restaurante Armazém 29, à Rua Pindorama – nome que satiricamente associei ao lugar em que se pendura a conta.
De costas para o mundo e absorto em mim mesmo, de repente voltei à realidade, quando uma pedinte aproximou-se por conta de uns trocados. A tarde ensolarada apagou-se de súbito cedendo lugar ao cenário noturno da Paulista. O relógio digital do Conjunto Nacional marcava 22:07. Parado em frente ao “CacaDonald’s”, para usar o Wi-Fi do estabelecimento, premia meu iPod qual faca empunhada frente à iminente ameaça de um ataque. A ciclovia estava semivazia – circulava apenas um suspeito ciclista, capuz do casaco a cobrir desnecessariamente a cabeça, já que o clima estava agradável e não havia nenhum indício de que fosse esfriar.
A pedinte se foi, veio um outro e meu pulso firmemente entranhou o aparelho à minha mão. Neguei a esmola e baixei a cabeça para seguir escrevendo quando uma bicicleta passou, um dos dois indivíduos encapuzados tentou pegar o aparelho de minha mão, porém devido à sua espessura fina e o prévio treinamento momentos atrás, o roubo foi em vão. Assim como foi em vão o desejo de perseguir a bicicleta que sinicamente era pedalada com tranquilidade, como se nada tivesse ocorrido. E em vão a bílis ferveu qual raiva instigante a romper um crânio caso houvesse ou percebesse uma pedra à vista. Pronto o instinto de assolar o inimigo se desfez, pois um aparelho não vale uma vida. Olhei para os lados, percebi que demais transeuntes acompanhavam o ocorrido, desviei o olhar dos deles, e desci a Rua Augusta, a caminho de casa. E assim despedi-me do assunto sobre o qual pretendia escrever, que tomou um outro rumo, por conta de dura trombada frontal com a realidade brasileira – realidade da qual me desacostumara, visto que levava quase dois anos sem voltar ao país.
Um pouco antes de entrar na Augusta, passei por um rapaz que vendia pizza a um grupo de enlaricados. O prefeito de São Paulo não só importou ciclovias de Amsterdã, mas um pulmão de maconheiros também. E junto com eles, uma nova maneira de se ganhar dinheiro: vendedor ambulante de pizza para os puxadores de fumo do centro da cidade.
Vira o mesmo tipo oferecendo a queridinha redonda, que os paulistas apregoam como a melhor do mundo, aos esqueitistas e frequentadores da reabilitada Praça Roosevelt, quando passara por ali para visitar uma querida amiga, cujo apartamento dista apenas um andar do qual morara o escritor Ignacio de Loyola Brandão, décadas atrás. Parei por um momento à porta do edifício revendo memórias da época de quando estudava no colégio Caetano de Campos, que fica do outro lado da praça, no começo dos anos noventa. A padaria que havia ao lado, assim como a doceria Vendôme, não passavam de doces lembranças que ecoavam qual flauta a tocar Prélude À Près-Midi D’un Faune, de Debussy, e pousavam num suave beijo sobre a testa. Beijos e amassos que troquei no escurinho da sala do Cine Biju. As tardes solitárias que passava, sempre acompanhado de um livro, a vagar por aquelas ruas do bairro. Adiei a visita à minha amiga e sua família, voltei para a calçada e saí trombando com as escamas do tempo de meu ser, agora cinzas da memória, em direção à Nestor Pestana, buscando o caminho da biblioteca Mario de Andrade.
Logo em frente ao incinerado Teatro Cultura Artística, passei por alguém que dormia na rua que logo me chamou a atenção. Titubeei em voltar e registrar o que vira. Respirei fundo e fui em busca da informação. No chão jazia um ser a dormir abraçado ao que acreditava ser a verdade de seus sonhos. Voltei para fazer a foto por conta de sua tatuagem, em chinês, 信梦: acreditar nos sonhos.
Ele, ali, encolhido em sua posição de feto no ventre, sonhava as chances que nunca tivera ou que tivera e não soubera aproveitar. Ali estava ele a esperar um dia acordar daquela realidade.
Tarde da noite voltando para casa, descobri de onde saíam os gatunos que desmobilizavam a Paulista e seus usurários de celulares. Uma parede firme de maconheiros que se revezavam para subir da Rua Santo Antônio, no Bairro do Bixiga, para a Paulista, e demais locais da região, e trazer a troca que lhes daria um barato, ainda que saísse caro para as vítimas.
O mascote do grupo era um pitbull que recebia treinamento escalando a parede e pendurando-se num pedaço de borracha atado a uma corda. Certamente, o pobre animal era treinado para servir ao crime. São Paulo tristemente pode passar a ser chamada de Nova Amsterdã, porém totalmente marginalizada e desfigurada. Um implante malfadado de cirurgia plástica urbana.