Assim que ouviu o seu nome, sobressaltou-se e se destacou do banco de ferro, onde havia passado a noite todo retorcido e sonhado amarfanhados sonhos. Foi ao encontro de quem o chamara e se deu conta que perdera os óculos pela segunda vez em suas etílicas andanças por Hong Kong, naquele ano.
Ao perceber que seu mundo se convertera num amontoado de coisas embaçadas, dispensou a oferta de ir banhar-se e tomar café, para voltar a dormir deprimido e encolhido entre as grades daquele banco de praça.
Enquanto tentava retomar o fio da meada dos sonhos, se questionava se aqueles dois eram uma visão semi-esquizofrênica tal qual à da moça que se aproximara, na noite anterior, falando em cantonês e, diante da falta de reação do interlocutor, se fizera entender em inglês que queria uma cerveja. Cerveja regalada, a moça sentou-se ao seu lado – já que alguém se levantara e se fora, prevendo estar diante de confusão. Após alguns tragos, atirou a lata de Carslberg longe, simplesmente porque a música que o vizinho ouvia, assim como a conversa que lhe fora direcionada, não lhe agradara. Arrependida do ato imprudente, começou a se esbofetear com força e várias vezes, sem parar, por ter desperdiçado a bebida – ainda mais por de de 700ml. Pediu mais cerveja ao vizinho, mas já havia acabado. Logo em seguida, ao vislumbrar um rapaz que se sentara, do outro lado da praça, com um pacote de cerveja, correu para filar mais uma latinha. Voltou e sentou um banco mais adiante, não mais ao seu lado, esboçando cara de desprezo por ter bebido tudo e não lhe deixado nada.
Ainda não acreditava se aquela estranha situação havia realmente acontecido, no entanto Hong Kong sempre pareceu-lhe um lugar com pessoas especiais, portanto tudo era plausível, ainda mais por tê-la visto, horas depois, circulando pelo bairro a abordar outros homens que bebiam em mesinhas armadas na frente de tendas de comidas de rua. Atravessado de perguntas, tentava peneirar as mil faces existentes entre o ser e o não ser. Como distinguir os conflitos da razão daquilo que chamamos realidade? Como diferenciar os hóspedes internos dos seres que nos circundam? Sem saber a resposta para tais questões, respondeu ao segundo chamado deles e se preparou para irem ao aeroporto de Hong Kong. Era o último dia de estadia e a manhã seria um deslocar continuo por uma das mais belas paisagens naturais que fazem estrada à rota de aeronaves, nesse extremo rincão da China.
Os dois que tanto se menciona são pai e filho que vieram a estes lados do globo por conta de um bug no site da American Airlines que lhes proporcionou uma passagem de 200 dólares, ida e volta, São Paulo-Hong Kong, cada. Tudo parece muito louco, mas aconteceu. Há fotos e testemunhas do encontro.
Quem é míope sabe as agruras de se viver sem óculos. Por duas semanas, viveu entregue às penumbras da visão. O cenho trincado, pela constante tentativa de reajustar o foco das retinas gastas, concedera-lhe um ar severo, o que intimidava quem não o conhecia a fundo.
Sem querer, ao ajustar o foco de seu iPad para fotografar algo que lhe chamara a atenção de sua ofuscada visão, percebera que era possível enxergar perfeitamente através da câmera eletrônica do aparelho.
Portanto, cada vez que queria inteirar-se do que se passava à sua volta, abria o visor de seu iPad e debruçava-se à janela a observar o vai e vem de pessoa. Às vezes, sentia-se constrangido por parecer um invasor de privacidade, então simplesmente fazia fotos para posteriormente analisar o que a visão lhe privava. Aquela desconfortável situação de se ver circundado por vultos, remetia-lhe ao filme australiano A Prova (Proof), de 1991, no qual o protagonista era um fotógrafo cego, o qual fazia fotos de acordo com o que a sua percepção e audição captavam do meio ambiente. Após reveladas as fotos, pedia a alguém que descrevesse o que havia sido capturado e fixava breves descrições em braile no verso das mesmas.
A Prova: http://youtu.be/AixgCHv2N7I
Enquanto as demais pessoas, que passavam por ele, iam sedadas por seus aparelhos, ele se via num ângulo diferente da realidade. O que via era para inserir-se e não dispersar-se da multidão. Através do que distanciava as pessoas fisicamente uma das outras encontrara uma janela que lhe devolvia ao mundo, ainda que apenas como solitário expectador.