Chegada
Desembarquei em Addis Abeba por volta das 15 horas, já preparado para pernoitar, em algum exíguo espaço, no pequeno aeroporto internacional da capital da Etiópia. No entanto, fui surpreendido ao apresentar o bilhete, emitido para o meu próximo voo às 9:25 da manhã do dia seguinte, para o atendente da Ethiopian Airlines, que me informou que tinha direito a um voucher de hotel. Bastava dirigir-me ao andar de baixo – de onde acabara de vir.
Desci, passei novamente por um balcão apinhado de gente, à espera desordenada de atendimento, e relutei a querer entender que o voucher do hotel deveria ser retirado ali.
Pela expressão de cansaço de um grupo de africanos espalhados pelo chão – ao lado da desenfileirada turba de viajantes, também de africanos em sua maioria, cada qual com a mão estendida, empunhando passaporte, no intento de ter a sua identidade reconhecida -, tive a certeza de que praticaria duas horas involuntárias de paciência.
À Espera do Voucher
Misturei-me à massa e me perdi na sonoridade indistinguível dos diversos idiomas e dialetos da África. Mesmo entre eles, a língua comum para se comunicarem é o inglês. Um inglês desprovido de gramática e prosódia. De repente, um branco afoito para ser atendido, quase quebrou duas garrafas de vinho, que se encontravam em cima do balcão de atendimento, dentro de uma sacola do Duty Free. Logo foi repreendido pelo dono das bebidas: “man, você chega tarde, quer ser atendido de imediato e de quebra quer quebrar o meu vinho?! Fica quietinho na fila – advertiu um negro alto, encorpado e bem vestido. Pensei com os meus botões: “aqui é desorganizado, porém tem uma certa ordem implícita”.
Finalmente, consegui entregar o meu passaporte e o bilhete para solicitar um hotel. Após aguardar 15 minutos, recebi a notícia que não tinha direito ao voucher. Embora já tenha dormido em vários aeroportos pelo mundo, não me senti desconcertado e sem esperança. Recolhi o documento e o tíquete de viagem, aguardando com resiliência a troca de turno que percebi estar para acontecer.
Nova Tentativa
Mais quinze minutos escoaram pelo ralo da paciência. Entreguei novamente o passaporte e a passagem para um atendente que recém começara a trabalhar. Nesse meio tempo, o grupo que aguardava no chão, invadiu a sala de atendimento, reclamando que fazia três horas que esperavam por uma reserva de hotel. Embalado pelo tumulto, debruçado no balcão, com parte de sua roupa íntima exposta em meio a um metro e meio de pernas, um homem de trinta anos acusava o rapaz do computador de ter mudado o hotel dele e de o ter separado de sua companheira.
⁃ Você mudou indevidamente a minha reserva – ralhava o homem por detrás daquelas pernas gigantes, ornada no topo por um samba-canção xadrez. Arruma logo isso. Não quero ficar longe da minha companheira.
⁃ Um momento, por favor – disse com cara-de-espera-mais-quinze-minutos o rapaz vestido de uniforme verde. Vou verificar a disponibilidade de vagas no hotel.
De posse do voucher, desci as escadas, saquei um pouco de dinheiro local, me regozijei com mais um carimbo diferente no passaporte e tomei umas quatro doses – mais do que o recomendado diariamente – de ensolarada vitamina D, enquanto aguardava a van do local em que ficaria hospedado.
Hotel
Eram 19:30. O sol cedia o dia à noite. Exausto, sentei-me no fundo da van, abracei a mochila e cochilei a maior parte do trajeto. Ao chegarmos no hotel, passamos por um detector de metais e tivemos as malas escaneadas pelo raio-x. O checkin deu-se num piscar de olhos e logo me vi pronto para subir ao quarto. Comprei uma cerveja que custava 50 birrs, o dobro do valor do aeroporto.
O elevador chegou. Dentro tinham duas mulheres e um senhor com trajes escuros que lembrava um sacerdote ortodoxo – a principal religião da Etiópia é o cristianismo ortodoxo – informação que obtivera com um jovem e comunicativo addis abebense que trabalha no aeroporto como representante do hotel, que me disse ganhar apenas 50 dólares por mês, e que fazia bicos como guia. Hesitei em entrar no elevador com a garrafa de cerveja, mas o recepcionista com um sorriso e com a mão estendida, me deu a entender que não havia problema.
O “sacerdote” com um gesto imponente indicou que saísse do caminho e me colocasse longe da porta, posto que seu andar já iria chegar. Observei o senhor negro de bata deslizar como uma santidade severa até a ponta do segundo andar. O elevador era panorâmico e podia-se ver, pelos desvãos, o sofá da recepção e os corredores dos andares se distanciarem como numa cena de filme.
Desci no sexto andar. Entrei no quarto, larguei a garrafa, ainda cheia, sobre o criado mudo e adormeci sem cerimônia.
Sonho
Despertei de um sonho conturbado em que um sacerdote, com um crucifixo enorme ornando o peito, seguido por um cortejo de mulheres com turbantes brancos, me perseguia a chacoalhar um sino de missa pelas ruas enlameadas de um dos bairros de Addis Abeba. De repente, acordei pelo toque do telefone que ressoava sem parar. Era a recepcionista que ligava para avisar que a van sairia às seis para o aeroporto. Mesmo sabendo que o celular estava sem bateria – havia esquecido o cabo de recarga em Guangzhou – tentei ver as horas assim mesmo.
Pela janela, o silêncio da madrugada se dilatava por entre as luzes opacas da rua. Um par de trilhos de trem – ladeados por muros que impediam que os pedestres os cruzassem indevidamente, circulando de um lado ao outro pelas pequenas lojas que fomentavam o comércio daquela via – era uma visão sonora de quão movimentada deveria ser ali, tão pronto o sol subisse a pino.
Duchei-me como se fosse pegar o próximo trem, que acordaria o dia dali a pouco, e desci correndo. Parei por engano no andar do restaurante e aproveitei para tomar café da manhã. A refeição era simples: ovos cozidos, arroz mesclado com legumes e molho, pão e café. A van aguardava quase cheia e pronta para partir. Sentei no fundo, ao lado do rapaz de um metro e meio de pernas, que pedia para o motorista parar porque a sua companheira estava no outro veículo. Ouvi alguém comentar que esse homem não podia viver longe da mulher, recordando o episódio do dia anterior no aeroporto. Concordei e rimos do pobre coitado – talvez ele tivesse receio de se tornar um “coitadíssimo” na acepção de um dos romances de Machado de Assis.
Despedida de Adis Abeba
Mulheres negras com turbas brancas e singelamente vestidas, homens com a cabeça protegida em respeito ao divino, despontavam pelo caminho em direção à igreja central – cuja arquitetura imponente estava desgastada pelo clima e pela pobreza. Um a um ia adentrando o pátio sagrado que era protegido por uma cruz enorme, esculpida acima dos portões de entrada. Tentei alcançar o máximo que podia com os olhos, mas as ruas solavancavam a visão que se perdia em meio ao barro, casebres, homens do exército com metralhadoras em punho, crianças sendo crianças ao brincar inocentemente face ao sofrimento.
Quando o avião decolou, senti o reflexo forte do sol a cegar-me os olhos, diante de tantas casas com teto de zinco. Espero um dia voltar a Addis Abeba para entender melhor o sorriso bonito de seu povo.