BANHOS

“Tomar banho é esnobismo”, Woody Allen

 

Bacias

Desde quando morei em Shenyang, no nordeste da China, em 2006, e durante outras várias ocasiões no decorrer dos anos, achava curioso ver moças, tanto na ida quanto na volta das férias, carregarem bacias junto com seus pertences da vida de estudantes universitárias. Fui entender para que serviam – as bacias – quando visitei a casa da mãe de uma ex-namorada, no inverno de 2013. De origem camponesa, a mãe divorciada, e já num segundo casamento, vivia na zona rural de Zhenjiang, cidade da província de Jiangsu. Para chegar até aquela região, após descer na estação de trem bala, ainda tínhamos que pegar uma condução de uma hora e ver a paisagem moderna desaparecer a solavancos, aqui e acolá, em meio à ruralidade. Passei uma noite lá e pude perceber a precariedade e simplicidade da condição de vida deles. A casa era bem rústica, com paredes mal acabadas, o chão de cimento desgastado pelo ir e vir de esperanças vazias. Agora, entendia porque a filha fora se refugiar na cidade grande.
As casas abaixo do norte da China não possuem calefação, apenas ar condicionado para climatizar o ambiente, no período de baixa temperatura, e colchas elétricas que ajudam a aquecer o corpo.

colchaeletricacolcha elétrica

Confesso que nunca fui muito neurótico com a higiene, como costumam ser os brasileiros. Portanto, antes de me deitar, fui ao banheiro apenas para escovar os dentes e “lavar as mãos” – como certa vez me disse uma conhecida chinesa, que é deselegante anunciar que vai ao toalete. Logo ao entrar, notei espalhadas pelo chão, perto da banheira, em diversos tamanhos e cores, uma encaixada na outra, as ditas cujas, as tais das bacias. Junto a elas jaziam garrafões térmicos que os chineses usam com muita frequência no dia a dia, principalmente para beber água fervida e preparar chá. Vi também toalhas pequenas, de tonalidades distintas, penduradas na parede. Aqueles garrafões com água quente, no caso, eram usados na higiene pessoal. Ou seja, humedecer as toalhinhas com que os membros da casa limpariam as suas partes íntimas. Me achando um Sherlock Holmes, logo deduzi porque as estudantes carregavam bacias junto à bagagem.
garrafatermica
Logo depois, confirmei minhas presunções com a ex que me explicou
que antigamente os vestiários de algumas universidades não tinham água quente, por isso as meninas precisavam de uma bacia para lavarem os pés, de outra para o rosto e de uma terceira para higienizar as nádegas e a “pequena irmã” (xiao meimei) – forma graciosa empregada na linguagem coloquial para se referir ao órgão sexual feminino.

vulva
ilustração do termo 小妹妹 (xiao meimei):
fonte da imagem, texto em chinês

Diferentemente dos ocidentais, os chineses usam toalhas pequenas para se secarem. É muito comum levarem uma de casa, mesmo quando se hospedam em hotéis. Hoje em dia, esta na moda usar lenços comprimidos que ao contato com a água se abrem e são usados para lavar o rosto e também outras partes do corpo. Este cuidado é para evitar os germes que se encontram nas toalhas de hotéis, principalmente nas de rosto, pois as moças da limpeza às vezes as usam para limpar os vasos.

Essa namorada chinesa chegou a morar em Xangai comigo quase um ano. Era pleno dezembro, início de inverno. Aqui, o frio é mais rigoroso que no Brasil, dependendo da região chega a menos 40. No caso de Xangai, a temperatura mais baixa gira em torno de cinco graus – nessa época, costuma nevar por alguns dias. Certa noite, prestes a dormir, já deitados, notei um cheiro forte de suor na moça – não era um cheiro insuportável, mas chamava a atenção das narinas. Perguntei a ela quanto tempo fazia que não tomava banho. Chocado com a resposta: “duas semanas”. Reclamei e pedi para ir imediatamente se duchar, disse-lhe que morávamos em Xangai e não na roça – portanto, não tinha a necessidade de ficar tantos dias sem encarar o chuveiro.

Em Xangai, mesmo não tendo sistema de aquecimento durante o inverno, como é o caso de regiões com temperatura extremamente baixa, onde já em novembro as calefações passam a funcionar automaticamente, nos banheiros de casa têm lâmpadas de aquecimento, no teto, que tornam a temperatura ambiente mais confortável para a pessoa se despir e tomar uma ducha.

luzteto

Nos últimos três meses que trabalhei num clube de futebol em Shenyang, também no ano de 2006, por falta de recursos a luz e a água foram cortadas. Os poucos funcionários que restavam eram levados para tomar banho no vestiário de uma universidade militar próxima do clube.

O ambiente parecia um pouco com o do filme Banhos (Shower), 1999, do diretor Zhang Yang. Amplo, com várias duchas distribuídas lado a lado e sem divisões, aquele foi o nosso local de banho por várias semanas. Era estranho ver alguns rapazes esfregando as costas uns dos outros no chuveiro. Com o passar do tempo, percebi que os homens chineses são afetivos entre si, porém de maneira “assexuada”. Andar abraçado, de mãos dadas, fazer massagem, sentar no colo, etc. eram os tipos de intimidade física que via com frequência.

Num dos cantos do vestiário, tinha uma maca onde um profissional, sempre nu, era pago para esfoliar os clientes. Ele jogava água quente pelo corpo da pessoa e começava a esfoliação e massagem pelas costas. A maca sempre estava ocupada.
Além desse vestiário, vez ou outra, também nos levavam a casas de banho. A entrada custava 2¥ (R$1,50).

Um dos treinadores brasileiros passou três meses tomando banho de canequinha, com água do filtro térmico que tinha no quarto do dormitório do clube. Quando fazíamos piada dele, o treinador ria com a cara deslavada e dizia:

– Vocês não sabem o que é banho de gato, de um gatão brasileiro.

Então caíamos na gargalhada e o provocávamos.

– Esse gatão tá ficando pardo e escamoso.

Em Shenyang, muitos apartamentos populares tinham apenas vasos sanitários nos banheiros, o que obrigava os moradores a frequentar essas casas de banhos – como já morei em pensão no Brasil, sei como é ter que compartilhar banheiro; e, para finalizar as comparações, quando visitei Paris pela primeira vez em 2000, uma amiga francesa, me ajudando a reservar um hotel, me perguntara se preferia quarto com chuveiro ou sem.
Como que eu sei que os apartamentos não tinham chuveiro? Uma paquera chinesa, daquela época, me convidara para ir à sua casa e, ao pedir-lhe para ir “lavar as mãos”, me dei conta de que o banheiro* era literalmente um lavabo**. De repente me veio à lembrança cenas de um de meus filmes favoritos, Beijos Roubados, de François Truffaut. Selei os lábios da moça e cantarolei Que Rest-il De Nous Amour (O que resta do nosso amor), canção tema desse clássico da La Nouvelle Vague.

Esta crônica é baseada em experiências que vivi na China entre os anos de 2006 e 2013. São relatos de casos isolados, portanto não se deve generalizar. Eu mesmo cheguei a ficar quase sete dias sem tomar banho devidamente, mas foi por uma questão de necessidade.

Cena do filme Beijos Roubados (Baiser Volés), do Truffaut,
para ilustrar a ideia do uso da toalha e do apartamento sem chuveiro

*banheiro – cômodo da casa onde se acham instalados a banheira e/ou o chuveiro, vaso sanitário, pia e, às vezes, bidê
**lavabo – quarto de banho pequeno, com lavatório e sanita (privada)

 

7 comentários em “BANHOS

  1. Pois é Amigo, nós aqui da terra dos tupiniquins, temos nossas culturas e algumas regiões onde você pode observar de tudo, lembro quando crianças que o banheiro era bem precário e a forma de banheiro ainda mais difícil, muitas casas nem chuveiro tinha ou era de cuia ou cacimba, por isso devemos respeita e tentar entender a cultura de tantos povos, hoje devemos agradecer por termos tantas coisas modernas a aproveitar.

    1. Sábias palavras, Vandinha. A crônica é para aproximar mundos através dos exemplos de semelhanças de modos de vida que você citou. Muito obrigado pelo comentário. Você deve ter experiências ricas e vívidas da época que morava em Manaus.

  2. Gostei do comentário de Vanda, pois muitos iriam generalizar e achar que os chineses não tem costume de tomar banho. Eu que sou descendente de chineses, nunca presenciei algo do tipo como Gilson descreveu. Talvez porque minha família e do meu esposo sejam do sul e o clima geralmente é mais quente no verão obrigando as pessoas a tomarem banho com mais frequência. Quem é do sul tem o mesmo hábito dos índios brasileiros em relação ao banho. E quando eu era pequena, se eu não tomasse banho com certeza levaria bronca da minha mãe.

    1. Oi, Shoyu!
      A minha intenção não era denegrir a imagem do chinês. O texto realmente está falho e permite má interpretação, pois apenas mostrei um lado da moeda e não apresentei exemplos de outras regiões, como a de Guangdong, onde moro atualmente.
      Eu mesmo já fiquei quase uma semana sem tomar banho, porém por questão de necessidade.
      O tempo todo deixei claro que essas condições se deviam por conta do frio. E não por uma questão de descuido com a higiene.
      A minha namorada é de Guangzhou e toma banho diariamente, assim como todos de sua família. Há uns que são vaidosos, tanto homens quanto mulheres, passam creme e se perfumam. O cuidado com a limpeza é constante, tanto que aqui tem o costume de se lavar a louça antes da refeição, em restaurantes, com água ou chá fervendo. É simbólico, mas o costume permanece, mesmo o o jogo de louças estar lacrado.
      Vou revisar o texto para que não fique essa interpretação ambígua.
      É uma pena que não consiga postar imagens nos comentários, assim poderia compartilhar os printes da conversa que tive com a minha ex-namorada confirmando essas informações e o de um depoimento de uma estudante chinesa comentando algo similar.
      Vale lembrar que os fatos são de 14 e 7 anos atrás. Muitas coisas mudaram.

  3. Vou corrigir o que postei acima quando disse: “nunca presenciei algo do tipo como Gilson descreveu.” Na realidade quis dizer sobre o caso da ex. De levar semanas sem tomar banho, ou de parecer que não costumam tomar banho diariamente. O resto, sobre as toalhas e bacias, sim, eu também já presenciei. E da última vez que visitei a China, tive sorte de ter levado minha própria toalha brasileira, pois não sabia que lá não tinha esse tipo de toalha. Não me acostumei a me enxugar com as toalhinhas porque eu perdia a paciência.

    1. No caso da minha ex-namorada, talvez seja desleixo dela. Não foi generalização. É um caso isolado. No final do texto, faço menção aos franceses e cito meu próprio exemplo que fique claro que esse tipo de situação pode existir em outros lugares do mundo.
      Me ocorreu agora o caso de uma empregada, não vou mencionar a região dela para não causar a impressão que estou sendo preconceituoso. A moça sempre que ia ao banheiro, na casa dos patrões, não dava descarga. Isso irritava a patroa. O marido, porém, sabendo da origem humilde da empregada, imaginou que ela não tivesse descarga no banheiro de caso, por isso não sabia que devia desaguar o que estava no vaso após aliviar-se.
      Da próxima vez que vier à China, escolha a época do inverno e vá passear por aquelas regiões frias do país.
      Ainda bem que você comentou, assim posso inserir a história do treinador brasileiro que passou três meses tomando banho de canequinha no clube chinês. Ele não queria ir nas casas de banhos. Então, tomava banho de gato.

  4. Muy buen artículo GILSON!! Felicitaciones.
    Por momentos me hizo recordar a los 9 meses que viví y recorrí China en 2018, cuando en los últimos meses tuve la suerte de conocerte.
    Cuando estuve 7 días conviviendo con mi traductora en el Hotel de Negocios de Xingtai. Ella era China y por cuestiones de presupuesto compartí la habitación con ella en camas separadas. Yo le dejaba el cuarto y me retiraba y nunca quiso bañarse y colgaba toallitas húmedas tal cual lo describis. Después consulté con un amigo Chino de Beijing y me dijo que sus costumbres eran de los pueblos de China.
    Tal cual lo describis vos Gilson.
    En síntesis el hombre es un animal de costumbres, pero muchas de las costumbres chinas tienen al igual que todas un “por qué” y al ser costumbres milenarias más aún.
    Abrazo grande desde Argentina amigo GILSON!!
    Beso a Sissi, saludos a tu familia en Brasil.

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